No próximo dia 14 de setembro, será lançado no Salão Nobre do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, após a cerimônia de entrega da Ordem de Mérito Jus et Labor, o livro “A Universidade Discute a Escravidão Contemporânea: práticas e reflexões”, que tem como um dos organizadores o padre Prof. Dr. Ricardo Rezende Figueira.
Fundador da ONG Humanos Direitos, Rezende é reconhecido por sua atuação no combate à impunidade e violência no campo, no Pará, e atualmente é Coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos - NEPP-DH/ CFCH/UFRJ, líder do mesmo Grupo de Pesquisa no CNPQ e também atua como pesquisador nos temas: Trabalho Escravo por Dívida, Amazônia, Migração e Violência.
Conheça um pouco de sua história e seu envolvimento com o tema Trabalho Escravo, sua atuação na academia trabalhando o tema e o que sua obra traz de contribuições para o debate em prol da erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
ASCOM8: Conte-nos um pouco de sua experiência quando residiu no Estado do Pará? Foi neste período que teve contato com o trabalho escravo?
Ricardo Rezende: Em maio de 1977 cheguei a Conceição do Araguaia. Fui morar e trabalhar como agente pastoral da igreja católica local. E fiquei 20 anos. Mal cheguei e ouvi com frequência histórias de trabalhadores retidos em fazendas para trabalhar sob coerção. Era gente de diversas partes do país, especialmente do Nordeste e do Centro Oeste, que devia derrubar matas, plantar capim, fazer cercas. Uma gente terceirizada para "empresas" coordenadas pelos pistoleiros mais famosos da região: Chicô, Abilão, Adão Modesto, Zezinho da Codespar, Luiz Bang Bang. E prestavam serviço para os maiores grupos empresariais de capital financeiro e industrial do país e mesmo do estrangeiro. Certamente mais de 90 % das empresas utilizavam da mesma forma de trabalho.
O número dos assassinados na fuga do trabalho escravo e tinha a identidade e os corpos ocultados em cemitérios clandestinos nas próprias fazendas era grande. Como, em geral se tratava de pessoas de outras regiões do país, não havia no sul do Pará quem chorasse por eles, denunciasse os fatos ou cobrasse seus corpos. A igreja católica, através da Comissão Pastoral da Terra, era uma voz isolada nas denúncias de tais fatos.
ASCOM 8: A partir de sua experiência, como foi levar o tema paraser objeto de estudo na Academia?
Ricardo Rezende: O reconhecimento acadêmico da categoria "escravo" para a modalidade de relação de trabalho sobre a qual descrevi acima encontrava forte resistência. A categoria havia emergido em testemunhos, em romances e na imprensa desde o século XIX, quando por volta de 1850, o colono suiço Thomaz Davatz, aliciado para trabalhar em fazenda de São Paulo, escreveu seu livro denúncia; ou Euclides da Cunha, nos anos 1920, se estarrece na Amazônia, com a situação dos seringueiros, aqueles que "trabalhavam para ser escravos".
Na Universidade se falava em peonagem. Aos poucos, em alguns setores universitários, a categoria adquiriu fórum legitimado - com José de Souza Martin e Neide Esterci - e surgiram dissertações de mestrado e teses de doutorado tratando do tema. Fui um dos primeiros a abordar na pós-graduação o tema e criei com apoio de outros pesquisadores, em 2013, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo.
ASCOM 8: Para você, de que forma as reflexões geradas no âmbito acadêmico sobre o tema podem contribuir para uma maior compreensão do problema e até mesmo na luta contra o trabalho escravo?
Ricardo Rezende: Realizamos anualmente reuniões científicas com pesquisadores brasileiros e estrangeiros para tratar do tema. Um ano realizamos no Campus da UFRJ, outro ano em universidade de outro Estado. A próxima - VIII Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas - será realizada em novembro de 2015.
São ocasiões para se intercambiar as pesquisas. Por exemplo, os estudos podem revelar o perfil das chamadas vítimas, seus sonhos, seus limites, sua escolaridade, etc. Tais estudos apontam para as necessidades específicas de políticas públicas, pois não podem ser traçadas sem se compreender quem é o destinatário delas. Os estudos apresentados pelos operadores de direito podem apontar caminhos para promotores e juízes.
ASCOM 8: Na sua visão, qual a principal diferença entre a escravidão que aprendemos nos livros de história e a escravidão contemporânea?
Ricardo Rezende: Até 1888, no Brasil, havia uma escravidão "legal" e uma ilegal. Após a lei abolicionista, só há a ilegal. A ilegalidade é marca essencial dos nossos tempos. Há outros aspectos que aproximam ou distanciam uma da outra. A anterior, em geral, era de longa duração, o escravo era caro, havia escassez de trabalhadores e o escravo sabia quem era seu senhor. A atual é em geral de curta duração, o escravizado barato, há abundância de mão de obra disponível para o aliciamento e o escravizado não sabe quem é seu senhor. Em ambas as circunstâncias a pessoa é desqualificada, tratada como se fosse mercadoria e sua dignidade é profundamente atingida.
ASCOM8: Na sua opinião a escravidão contemporânea é mais difícil de ser abolida?
Ricardo Rezende: Enquanto houver bolsões de pobreza, desemprego e miséria, haverá gente inescrupulosa e gananciosa aliciando e escravizando pessoas. E no mundo contemporâneo, há multidões desempregadas, ameaçadas por guerras e desesperadas por muitas razões. O fluxo migratório de milhões de pessoas revela a face dos deslocados migrantes internos e imigrantes que buscam socorro dentro e fora do país. A Europa vive um momento especial e certamente pode se recordar que ela própria, ao longo dos séculos, exportou pobres e desesperados para o mundo, especialmente para as américas. São necessárias outras bases nas relações comerciais internacionais, outras e melhores formas de acolher os refugiados econômicos e políticos.
ASCOM8: No livro "A Universidade Discute a Escravidão Contemporânea: práticas e reflexões", que será lançado no TRT8, o que o público encontrará?
Ricardo Rezende: Um painel brasileiro e estrangeiro sobre os mais novos estudos e reflexões acadêmicas sobre o tema em um diálogo interessante e interdisciplinar sobre o assunto, inclusive realizado por operadores do direito.
ASCOM8: Como esse livro foi desenvolvido?
Ricardo Rezende: É um trabalho coletivo. São 21 capítulos, redigidos por 35 pesquisadores, e dele participaram comigo na sua organização, as Doutoras Adonia Antunes Prado e Edna Maria Galvão. Entre os pareceristas contamos com a contribuição dos Doutores José Cláudio Monteiro de Brito Filho, Horácio Antunes de Sant'Ana Jr. e Vitale Joanoni Neto. Alguns Procuradores do Trabalho, os doutores Jonas Ratier Moreno, Faustino Pimenta, Alpiniano Lopes; e os Juízes do Trabalho - Paulo José Alves e Jônatas Andrade, foram fundamentais para a viabilidade da publicação do resultado das pesquisas.
ASCOM 8: Qual sua expectativa para realizar o lançamento deste livro no Pará?
Ricardo Rezende: É uma honra lançar o livro no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, especialmente na mesma data em que sou honrado pelo ilustre Tribunal. A Justiça do Trabalho, em diversas ocasiões, tem atuado com independência e senso de justiça em favor do estabelecimento da paz e da justiça social. Além disso, sinto o prazer de me encontrar com tantos amigos queridos na cidade bonita e acolhedora que é Belém.
Lançar o livro no Pará tem um significado simbólico. O Pará foi, ao longo dos anos, um dos locais de incidência grave do crime em diversas unidades de produção e houve em alguns momentos gravíssima omissão do poder público no enfrentamento do problema. Mas aqui, também, diversas pessoas resistiram e buscaram a superação do problema. Além dos próprios trabalhadores, cabe ressaltar, entre os que foram e ou são essenciais, na Comissão Pastoral da Terra - frei Henri des Roziers, José Batista, Ana de Souza Pinto, etc -, e o ilustre professor do Programa de Pós Graduação em Direito da UFPA, dr. José Cláudio Brito Filho.